Limite

Mário Peixoto; 1931.





Que na primeira vez que assisti 'de verdade' o Limite, não lembrei do cinemar, nem do tio Serpente, muito menos do Glauber, que disse certeiro assim:

Limite é 'revolucionariaula' de Montage pra tantos kyneaztas incompetentes.

E, pra mim, é isso mesmo e mais um tanto: uma necessária e única libertação poética experimental, um salva alma.

Depois, já na escola de cine, tive o privilégio de presenciar o José Carlos Avellar falando e ler suas considerações (especial não lançado e entregue em mãos) sobre o Limite, e isso foi tudo de lindo e especial. Na época espremi como pude as palavras pra assegurar a documentação das desmemórias mas só hoje, relendo-as, percebo quanto estava amarrada (mais que a moça da foto da Vu) e tão problemática quanto os personagens ilhados no bote sem remos. (Já ouviu falar de gaslighting?, pois foi. E da lei Maria da Penha?, pois foi também.) Quase pulei, no desespero, mas sobrevivi. Por isso, e por honestidade intelectual, o que sempre é muito significativo, colo os pensaventos exatamente do jeito que me saíram então, quando estava também eu, literalmente, 

À deriva  

Quando Afonso Segreto fez as primeiras imagens em terras tupiniquins a bordo do navio francês Brèsil, em 19 de junho de 1898, jamais imaginaria que, décadas depois, outras imagens sobre um barco e o mar fariam parte do filme-mito do cinema brasileiro. Exibido em 17 de maio de 1931 (e nunca comercialmente), Limite foi o único filme de Mário Peixoto, que tinha 20 anos quando o fez. Até ter a cópia única recuperada do mau estado de conservação na década de 70, era um filme mais comentado do que realmente assistido, o que só cresceu sua lenda. 

O filme começa com abutres pousados em uma rocha, à espreita, sinal que algo morreu ou está perto de. Então as mãos algemadas de um homem circundam o pescoço de uma mulher (1), Olga Breno, que olha direto para o espectador. De seus olhos se vai para um mar incendiado de luz e um pequeno barco, onde está com um homem (1), Raul Schnoor, e uma mulher (2), Taciana Rei, adormecida. Os remos estão parados, as roupas rotas e os cabelos despenteados. Dividem uma bolacha que ainda existe, o cansaço, o desânimo, a letargia do sol sem filtro, o mar que não se acaba no horizonte. 

Ao tempo modorrento do barco as lembranças vertiginosas dos personagens contrapõem e equilibram o ritmo da narrativa fragmentada, que mais sugere que revela. Em momento algum se descobre como os personagens acabaram no barco e se perderam. Nem se há realmente um barco, que pode ser a metáfora para um mar de significações. 

Os planos privilegiam os detalhes, pés que caminham, trilhos de trem, a meia desfiada da mulher 1, a mão do homem que gira dois pauzinhos. Desatada de grilhões, a câmera movimenta-se livremente e recorta ângulos incomuns, ora passeia por telhados, ora gruda no solo, plongèe, contra-plongèe, ao lado da mulher 2 observa do alto do penhasco a praia pequenina lá embaixo, sente uma vertigem que se insinua no plano que rodopia. 

Como em um poema visual, as imagens falam por si mesmas. A imagem é o que representa mas também o que não se vê, um sentimento. O mar é grande e sem saída, o barco é pequeno e começa a fazer água, os remos são inúteis. O homem desiste  e  prefere  se  lançar  ao  mar  a  continuar  com  a  espera,  as  mulheres também não possuem  esperança  suficiente para detê-lo, ele pula e somente bolhas  sobem  à  tona.  As  duas  mulheres  enfrentam  uma  tempestade,  o  mar quebra  violento  nos  rochedos  (sinal  que  a  praia  está  próxima?)  e  então  se acalma, e a música se altera.  

Alguém sobrevive. A mulher 1, bóia agarrada em um pedaço do que outrora fora o  barco.  Seu  olhar exausto  de  naufraga  encara  diretamente  a  câmera. Novamente brincando com o tempo, o filme retorna ao seu começo, ouroboros: a imagem dela presa no abraço de um homem com as mãos algemadas, o mar aceso, os abutres que levantam voo dessa vez.  

Singular na forma, ainda mais considerando que se trata de uma produção da década de 30, Limite é revolucionário na construção do sentido e principalmente do  sentir.  Com  uma  divisão  fílmica  do tempo-espaço  que  mais  nubla  que esclarece,  o  ritmo  e  a  beleza  das  imagens  mergulham  o espectador psicologicamente na história mesmo sem explicar muito sobre ela, sente-se. E basta. 

As paisagens  desfocam  e  se  embaralham,  como  o  próprio  sentido  e  a subjetividade das coisas à deriva do tempo e da mente: a vida e seu limite, a memória e o mar que não se acabam, o futuro sem bússola e sem rumo, fogo nos remos. Com suas metáforas e sua poética, Limite é ímpar na história cultural do país e na construção de suas imagens. O mar do tempo não lavou a força da história nem do olhar de Olga Breno, que acorrenta a atenção do espectador incauto  e  à  deriva  no  oceano  imagético  construído  por  Peixoto.  Com  ela  o espectador vem à tona da tempestade e do naufrágio e, novamente, fica à deriva do final que se aproxima e se suspeita mas que não se mostra.


Ps. Logo menos reescrevo tudo, com alma e coração, plena. Por agora, basta (re)assistir  e agradecer: é sempre um mergulho, sonho de criança que se realiza...












Um comentário:

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