Uma porta que se abriu de repente sobre o mar; um mar de fogo que rebrilha coruscante.
Idos da infância profunda, alto dos meus três pra quatro
anos, já noveleira com horas de tele-visão e n quilômetros de caminhada pelas
brechas do tempo. Minha primeira vez em Curitiba completamente acordada e
mergulhando sem máscara no desconhecido angustiante da subjetividade (incompreendida)
existencial, bem daquele jeitinho impossível de sempre.
Foi a primeira vez quando, que me lembre, participei de conversação sobre cinema
e suas possibilidades. E ouvi falar do Limite.
Que lá na minha casa tinha pilhas de jornais, revistas,
livros antigos e novos de esquisoteria, coleção de gibis de meu pai, bolas de
vinis e muitíssimas outras coisas interessantes (depois conto dos animais empalhados...) mas, até então, nenhum filminho. Tudo girava basicamente sobre a
escrita e, lógico (?), era por aí que eu suspeitava encontrar âncora e porto
seguro.
(Quanta ingenuidade né?, mal sabia que escrever é [auto]devoração e mergulhar[-se] sem fim...)
Mas então o tio Serpente escancarou(-me) a janela, melhor:
abriu uma porta sobre o mar.
Que foi ele que primeiro descortinou imaginagens diante do
meu serzinho, contou os causos e me mostrou o trabalho de fotógrafos famosos (e também suas próprias fotos) que depois me fizeram re-olhar
com amor multiplicado os álbuns antigos do avô (com todos aqueles tropeiros e
descampados, lindeza pura), e compartilhou comigo seu amor pelo cinema.
Desde
aquele dia eu me soube pra sempre, e quis (mais uma vez) ser velha logo: aposentado e com os filhos
já crescidos e fora da asa, ele transformou um dos quartos vazios em uma saleta
de ver filmes. Foi onde assisti meu primeiro filme em preto e branco, quando
por toda a Lei eu queria ir ver com meus próprios olhos o tal ‘cinema’ (como assim uma gigantesca tevê que não era tevê?!?...) mas não
tinha idade pra isso. Tentei convencer que eu já era adulta e madura (diga lá: quantas viajantes do tempo você conhece?..., pois então!,...) e ele riu e tentou me consolar e iniciar nos arcanos maiores da cinematografia (era Glauber Rocha?, sim ou
talvez?...). Já acostumada com o technicolor televisivo minhas vistas estranharam o preto e branco e minha cabeça cansou, e dormi antes do final, muito embora continue sonhando com isso até hoje.
Tio Serpente era organizado e amoroso com suas memórias fílmicas: fazia cadernetas recortando e colando
ingressos-imagens-citações e escrevendo com letra desenhada anotações dos filmes que assistia, pra lembrar ou pra não
esquecer?, e isso também me marcou pra todo o sempre. Muitos anos depois, tio
Serpente já tinha desencarnado, nas minhas explorações ao depósito encontrei uma
das cadernetas. Surpreendida pela poesia das palavras e imagens, profundamente tocada mas sem
entender direito do que se tratava, perguntei ao meu pai que que era aquilo,
coisas do avô?! Não lembro exatamente o que ele respondeu, além de que eram sobre cinema,
mas lembro de voltar pro depósito atravessada pela desmemória recuperada por
inteiro, agradecida e triste, e de chorar sozinha, infinitamente sozinha e inconsolável naquilo que era o antes do começo do caminho e de toda essa verdade que aqui está agora (alguém ainda duvida? foda-se você [3x]: a questão é quando e porquê eu mesma duvidei, isso sim); com saudade do tio que ligava e sempre perguntava das minhas viagens no tempo. Lembrei tudo e sem entrar na água meu coração encolheu do tamanho de uma uva passa. Lembrei, pra logo depois esquecer tudo de novo e só assim conseguir continuar vivendo.
Pois foi. &,
Quando contei pro tio Serpente que um dia ia estudar cinema em
Curitiba, com aquela veemência típica de criança viajante do tempo que ainda
não aprendeu a ter medo e se autocensurar, ele respondeu amoroso e condescendente que era
difícil, que em el cine tudo é caro (não existia o digital...), mas não
impossível. Bastou-me: é com alegria que trabalho com o impossível, na Vida..., respondi. Levou muito tempo, (ParAná,) a escola de
cine só começou a existir em 2005 e mesmo assim ainda tive de rolar muito até chegar, e
ainda hoje-ontem sinto que não cheguei totalmente, pelo menos até agora, quando aceito que sempre estive.
Mas então, o que eu queria contar mesmo era que quando ouvi ele falar sobre o Limite, sua força e poética, suas lendas e a irreversibilidade do tempo que o corroeu e que nos corrói a cada segundo-frame, foi literalmente a tal sensação de tocar num fio desencapado: choque puro. A arte pela arte, o impossível realizado.
Então que hoje, 19/06, dia do cinema nacional (tem gente que considera 05 de novembro que foi quando, reza a lenda, aconteceu a primeira exibição cinematográfica pública do país, em 1896 no Rio de Janeiro, mas eu gosto do cabalístico 19) , não teve jeito de não matutar sobre.
O risco da realidade, o cotidiano fantástico que estraçalha todo ceticismo cartesiano, a narrativa esfacelada num redemoinho de vidas que (cine)mar nenhum comporta. O mergulho sem máscara. Filmes de mar, canções de amor. A Vida: mise en abyme, eternidade.
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