Brim Coringa

Desde sempre sonhava com o mar, gigantesco e profundo, assustador e bonito, repleto do que existe e não se vê a menos que se mergulhe.

Não sei quantos cadernos preenchi com desenhos de sereias e barcos e afins, comigo desde sempre uma vontade de sal que sentia latejar no meu sangue e que povoava todos os meus sonhos. Achava que era um tipo de herança vinda de meu pai, nascido em Antonina, e que tinha uma estrela do mar (coisas do vô...) guardada no armário.

Depois, ou antes, ou durante, quando pela primeira vez pensei sobre cinema tive a certeza absoluta (e reveladora de caminho novo) de que o cinema era um mar, e cada filme um mergulhar diferente. (Diz que para os antigos tudo nascia do mar, tanto o bem quanto o mal.)

Continuo a mesma: ainda acho.

Lá pelas tantas aquele desespero: não sabia nadar.

Além do mais, já tinha reparado que quando a gente fica muito tempo na água a pele se enruga como um maracujá de gaveta ou uma ameixa seca: apavorada, via a imaginagem do meu coraçãozinho assim enrugado e encolhido no meio de tanta água (aparentemente a escrita era montanha íngreme e difícil, porém firme e menos assustadora que balançar ao sabor das marés), e os escafandristas vindo procurar o resto de mim que os peixes não conseguiram devorar.

(Um pouco dessa sensação ainda persiste...)

Na já velha e saturada tática de esquecimento pra autopreservação, deixei esses pensaventos pra depois e segui nas incursões ao depósito e na devoração de revistas e gibis antigos. Foi quando vi a primeira propaganda do brim coringa:

Até que enfim!, o brim que não encolhe por mais que se molhe!

Fiquei doida com tanta tecnologia daquele tecido ‘feito pra durar uma vida toda’, e queria porque queria uma calça brim coringa (diz minha mãe que eu tinha uma calça azul e que era de brim, mas eu queria mesmo era o tal brim coringa... sabecomé essas coisas de publicidade na cachola das crianças né?...), mas parece que já nem existia mais, só jeans. E foi bem depois disso que eu li Adélia Prado e entendi que o que eu precisava mesmo era de um coração brim coringa: pra garantir mergulho sem hora e sem medo de encolhimento. (Sem esquecer de pedir-agradecer a proteção divina antes de entrar na água:)


O poder da Oração 

Em certas manhãs desrezo:
a vida humana é muito miserável.
Um pequeno desencaixe nos ossinhos
faz minha espinha doer.
Sinto necessidade de bradar a Deus.
Ele está escondido, mas responde curto:
‘brim coringa não encolhe’.
E eu entendo comprido
e comovente esforço da humanidade
que faz roupa nova para ir na festa,
o prato esmaltado onde ela ama comer,
um prato fundo verde imenso mar cheio de estórias.
A vida humana é muito miserável.
‘Brim coringa não encolhe’?
Meu coração também não.
Quando em certas manhãs desrezo
é por esquecimento,
só por desatenção.


Sozinha fui aprendendo a engolir o desespero: e se hoje ainda não sei nadar garanto que sei pelo menos não me afogar.  E calma e lenta sigo entrando nesse imenso mar cheio de estórias. Mas, por esquecimento ou desatenção?, parece que ainda faltava contar essas...




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